Por Francisco Noa
A poesia pode significar? No célebre poema do norte-americano Archibald MacLeish, sugestivamente intitulado “Ars Poetica”, a resposta nao podia ser mais peremptória: The poem should not mean/ But be. Isto é, claramente somos remetidos para a poesia como finalidade em si mesma, no sentido de que não interessará que ela signifique, mas que sobretudo seja. Este pode ser um pressuposto importante ao (e para) ler este primeiro livro de poesia de Chagas Levene. Por um lado, tomando o poema “Inventar um passo de dança” (p. 58): Dizem-me que te preocupas comigo confesso que continuo A escrever poemas mas não penso em publicar livros Estou apenas a exercitar-me como um bêbado vulgar Que procura inventar um passo de dança Segurado a um candeeiro de iluminação percebemos que estamos diante de uma “autopsicografia” poética despretensiosamente assumida pelo sujeito. E a mensagem subjacente é, deveras, sugestiva : um poeta que se preza não escreve livros, faz poesia. Uns dos mais emblemáticos exemplos desse princípio, quase sagrado, encontrámo-lo no patriarca das letras moçambicanas: José Craveirinha, a quem é dedicado o último poema da presente obra. Como se sabe, o número de poemas publicados pelo poeta da Mafalala é infinitamente inferior ao que ficou por publicar. Não surpreende, pois, que na poesia de Levene nos confrontemos com a perplexidade do sujeito em relação ao processo no qual ele próprio se vai inscrevendo e dele vai emergindo: “Meu Deus / O que é a poesia? / Sinto-me deprimido e com a gaveta a abarrotar de papéis” (p. 9). Nesta tentativa de lermos esta obra, como uma forma de ser poesia, temos, por outro lado, uma espécie de volúpia de sonoridades que lhe dão forma e sentido. Sem ser necessariamente musical, esta é uma poesia sonora na sílaba, na palavra e melódica no verso que, mais do que afirmação do quer que seja, é, sobretudo, uma busca das suas possibilidades plásticas. Naquilo que poeticamente pode ser construído enquanto emanação da linguagem, da razão, da sensibilidade e da imaginação. Como que movido por um rumorejante apelo rítmico e musical, os poemas vão eles próprios cadenciando-se na descontinuidade da mancha gráfica (alternância entre poemas longos e curtos), no resgate dos tons e dos sons, tal o caso das aliterações presentes, por exemplo, num verso como “Pensando bantas pernas esbeltas ao vento” (p. 11), das onomatopeias “dong, dong, dong” (p. 41), “Bum Bum Bum” (p. 67). Afinal, como ele próprio assume, “A minha língua materna/ É o som das palavras” (p. 20). A vocação musical da poesia de Levene pode também ser encontrada na reiterada identificação com ritmos: o “Mtsitso” (p.3), o “kuduro” (p. 14), a “sungura” (p. 17), “timbilas” (p. 27), “Jazz” (p.35), “Rap” (p. 39); com músicos: “Paul Simon”, “Ray Phiri” (p. 23), “Gabriel, O Pensador” (p. 73) ou com instrumentos: “Mbila” (p. 45), “piano” (76). Apesar de afirmar que “agora ando ando ando atrás de algo/ Que só existe na imaginação” (p. 5), encontramos, nos diferentes poemas desta obra, múltiplas e variadas referencias ao mundo envolvente do sujeito e que traduzem um intimismo do quotidiano, ora dialogante ora questionador quando não mesmo celebrativo. Como diria T.S. Eliot, a poesia está oculta dentro de nós e nas coisas que nos rodeiam. O mérito é descobri-la e dar-lhe vida. Às vezes, com os pequenos nadas ou com os enigmas indecifráveis de que é feita a nossa existência como, por exemplo, o amor: O amor é uma estátua surrealista uma criança nos seus braços Um adolescente sorrindo um homem se ajoelhando O amor é um velho pedindo mais um dia (p. 33) A vibração e a sensibilidade juvenis desta obra, ao lado das promissoras pospostas literárias de outros jovens como Awita Malunga e Eusébio Sanjane, um sopro estimulante de frescura, indiciam que a literatura moçambicana nao morreu, afinal. Com alguma timidez, é certo, ela parece querer seguir o exemplo de outros mais dinâmicos do nosso panorama artístico, caso das artes plásticas ou da música, em que os executantes do rap e do hip hop, ousados e reinvintivos na mistura de ritmos, sons e de linguagens, desbravam novos caminhos para a arte e para a cultura. Ainda é obviamente muito cedo para afirmarmos que em Levene achamos definitivamente um poeta. Mas Tatuagens das Estrelas é seguramente um passo importante nesse sentido. Por outro lado, fazendo parte de uma geração que se quer afirmar artisticamente, Levene mostra-nos que, para que tal se alcance, não é necessário recorrer à obscenidade gratuita, à caceteirice, à imitação barata e à irreverência irracional e gratuita. E, sobretudo, sem pressa nem vedetismos. Que ele prossiga, pois, com muita humildade, método, rigor, labor oficinal e muita imaginação, a exercitar-se sempre e em crescendo “como um bêbado vulgar/ Que procura inventar um passo de dança/ Segurado a um candeeiro de iluminação”. A poesia, e todos nós, ficar-lhe-emos naturalmente gratos. Maio de 2007
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